No dia 19 de janeiro, a música brasileira pode lembrar de uma de suas mais importantes vozes. Esse seria o dia do aniversário da cantora Nara Leão, que se estivesse viva, completaria 66 anos. A menina que quando tinha 14 anos apenas queria tocar numa academia de violão recém aberta no Rio de Janeiro. Mas seu talento levou a cantora a ser uma das mais versáteis intérpretes da música brasileira. Tudo começou com um presente de seu pai.
A bossa
Quando Nara tinha doze anos, em 1954, seu pai, o advogado Jairo, lhe deu de presente um violão. Dois anos depois o destino dos violões da garota e da turma da futura bossa nova iriam se cruzar. É que nem todos os pais cariocas gostavam que seus filhos tocassem violão. Os pais de Roberto Menescal, em 1956 com 18 anos, cortaram sua mesada ao saber que o filho tinha escolhido ser músico em vez de arquiteto ou engenheiro. Para recuperar esse dinheiro ele resolveu montar uma academia de violão junto com seu amigo Carlinhos Lyra.
Ao saber da academia, Nara foi uma das primeiras matriculadas. Com o passar do tempo, a menina passou a levar seus novos amigos da academia para o apartamento de sua família. A partir de então, o apartamento seria um dos pontos de encontro mais importantes de uma turma formada por Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, suas alunas, mais João Gilberto e Vinícius de Morais, entre outros. Era a turma que estava fazendo no Brasil uma nova forma de pensar a música brasileira, tudo muito diferente do que estava sendo feito até aquele momento no Brasil, em termos musicais.
Com o passar do tempo, o que eram encontros descompromissados no apartamento da linda Nara passaria a ser algo profissional na noite carioca e na música brasileira. Numa época em que aquele novo tipo de música ainda era chamado de samba moderno.
Em 1963, chegaria a vez de Nara se profissionalizar como cantora de bossa nova. O que não agradou em nada os demais integrantes daquele movimento. Todos achavam que Nara não deveria ser cantora da noite carioca, gravar discos e tudo o mais, que deveria ser apenas a musa da bossa nova. O que era inevitável. Visto que Nara participou do primeiro encontro de bossa nova, o primeiro samba session, em 1959, (onde pela primeira vez o samba moderno era chamado de Bossa Nova) e dos demais encontros da bossa.
Seu primeiro trabalho seria o espetáculo Pobre Menina Rica, montado por Vinicius de Morais e Carlinhos Lyra, com uma temporada no restaurante carioca Au Boun Gourmet. Ainda em 1963, Nara participaria do disco de Lyra, Depois do Carnaval, e lançaria seu próprio disco, o polêmico Nara, onde, pela primeira vez, a música dos morros cariocas se encontrava com a bossa nova. A cantora ficou meses produzindo o disco em seu apartamento com Cartola, Zé Kéti e Nelson do Cavaquinho.
A polêmica era essa junção de novos ritmos, uma afronta para os mais conservadores de nossa música. Nara era o que mais diferente havia em termos musicais no Brasil depois de Chega de Saudade. Nada comparado ao racha definitivo da bossa nova. Com os a favor e os que eram contra o disco Opinião, de Nara, lançado no ano seguinte. Todas as canções gravadas tinham uma temática voltada para a verdadeira realidade das classes sociais mais pobres. Apenas duas falavam de coisas a la bossa nova, como amor-flor-dor.
Esse mesmo disco ainda foi base para o show Opinião, de dezembro de 1964, com direção de Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Era o momento em que a cantora era transformada definitivamente na musa das canções de protesto brasileiras. Além de ser seu elo de ligação com outro movimento que viria mudar completamente as estruturas da música brasileira, a Tropicália. Quando Nara ficou doente e teve de ser substituída, escolheu a cantora Maria Betânia para ocupar seu lugar no show, com isso foi possível Caetano Veloso e Gal Costa saírem da Bahia rumo às revoluções tropicalistas.
O pop
Tempos depois do lançamento do último disco da cantora, o produtor compositor e escritor Nelson Motta mandou um e-mail para a cantora Fernanda Takai dizendo que tinha um desejo de gravar um disco de releituras da cantora Nara Leão na sua voz, por considerá-la a Nara Leão do pop rock brasileiro. O e-mail acabou resultando em algumas conversas até que Fernanda aceitasse o convite.
No fim do ano já chegava ao mercado Onde Brilham os Olhos Seus, primeiro trabalho solo de Fernanda Takai depois de quinze anos a frente de uma das bandas mais importantes do pop rock brasileiro. Foram meses de pesquisa na obra da cantora, com direito a conversas com pessoas mais próximas de Nara até chegar no que seria as faixas do álbum.
São treze faixas que sintetizam toda a versatilidade da cantora, com direito a músicas das mais diversas fases de Nara. Onde Brilhem os Olhos Seus abre com o samba Diz Que Fui por Aí, de Zé Kéti, do encontro da bossa nova com o samba dos morros cariocas, seguido por Lindonéia, música de Nara no disco da Tropicália, depois ainda tem o chorinho de Odeon, a bossa nova de Insensatez.
Dois cantores dos mais populares da música brasileira também aparecem no CD. Chico Buarque teve um disco inteiro gravado por Nara Leão. Com Açúcar, com Afeto, de 1980. A faixa que dá o nome do disco foi gravada por Fernanda. Além do Chico, Nara gravou um disco todo dedicado ao rei Roberto Carlos, E Que Tudo Vá Para o Inferno, de 1978. Desse trabalho Fernanda gravou Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos.
Uma das preocupações de Fernanda era lançar um CD em carreira solo no mesmo ano em que o Pato Fu lançava um novo CD (em 2007 saiu o nono CD da carreira da banda, Daqui Pro Futuro). Por isso o projeto era pra ser lançado apenas em 2008. Mas a cantora mostrou uma faixa do CD no Japão, país onde Nara construiu uma sólida carreira e conquistou muitos fãs. Isso aconteceu no desfile de lançamento da coleção do estilista Ronaldo Fraga, toda inspirado em Nara Leão. Esse mesmo desfile também pode ser visto no Brasil em junho de 2007, na São Paulo Fashion Week.
Os fãs e a crítica do Japão pediram e conseguiram o adiamento do projeto para 2007. A aceitação do público para o jeito pop Pato Fu de ser dado a obra de Nara Leão foi muito bem recebido pela crítica e pelo público. O CD saiu no fim do ano, mas já foi suficiente para ser o vencedor do prêmio de Melhor Disco de Música Popular de 2007 da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Além de o CD ter sua primeira edição esgotada no Brasil e uma edição especial feita para os japoneses, com direito a O Barquinho cantado em japonês, com o nome de Kobune.
O jeito pop do Pato Fu ser faz no CD não um disco de versões de Nara, mas de releituras da obra da cantora. Fernanda não quis se aventurar por territórios desconhecidos, mesmo diz não ter a malemolência necessária para cantar samba ou outros ritmos, como os cantados por Nara. Preferiu fazer um CD com a levada pop eletrônica já característica do som do Pato Fu. Outra contribuição para essa levada foi a produção de John Ulhoa e Lulu Camargo, respectivamente guitarrista e tecladista do Pato Fu.
A versatilidade
Falar de toda a obra de Nara Leão em uma única matéria seria impossível. Depois do sucesso e das polêmicas com a bossa nova e da participação nos protestos da Tropicália, Nara foi para um auto exílio na Itália e França com seu marido Cacá Diegues. No exílio, a cantora gravou um disco propriamente de bossa nova fazendo as pazes com o movimento e teve sua primeira filha, Isabel.
De volta para o Brasil, a cantora teve um filho, Francisco, gravou um disco só com os amigos, Meus Amigos São um Barato, ao lado de cantores como Edu Lobo, Dominguinhos, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Tom Jobim e Caetano Veloso. Outro disco só com composições de Erasmo e Roberto Carlos, E Que Tudo Vá Pro Inferno (que foi lançado em CD dez anos depois com o nome Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos), outro só com composições de Chico Buarque, Com Açúcar e com Afeto. Participou de trilhas sonoras de sambas enredos, novelas, filmes (entre eles Os Saltimbancos e Ópera do Malandro) e até mesmo de um disco da rainha dos baixinhos, em 1985, Xuxa e seus Amigos. Além de tudo isso, ainda passou num dos primeiros lugares no vestibular de psicologia da PUC.
A musa da bossa nova, que se aventurou nos mais diversos ritmos e tendências da música brasileira, ganha agora uma levada pop eletrônica na voz de Fernanda Takai. Pra quem não conhece Nara Leão, uma boa oportunidade para conhecer ou revisitar uma síntese de seus melhores trabalhos.
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